20/09/05

Familia de Aristides


Familia de Aristides
Originally uploaded by manuel.cmatos.
Um dos objectivos deste espaço é disponibilizar informações sobre o nosso patrono. Há uns tempos chegou-me à mão esta entrevista. Pelo seu interesse histórico resolvi transcrevê-la para que todos conheçam melhor Aristides de Sousa Mendes.

“QUE O MEU PAI SIRVA DE EXEMPLO”
Pedro Nuno S. Mendes

Esta entrevista foi realizada por Miriam Assor ao filho de Aristides de Sousa Mendes, Pedro Nuno, e foi publicada em 25 de Janeiro de 2005 no suplemento dominical , “Domingo Magazine” do Correio da Manhã a propósito dos 60 anos da libertação de Auschwitz.

Pedro Nuno é o filho de Aristides de Sousa Mendes, o cônsul português que na II Guerra Mundial estava em Bordéus e desobedeceu às ordens de Salazar, seladas na Circular 14 – o despacho que proibia os diplomatas de conceder vistos a judeus e a quem estivesse no escopo nazi. A atitude dele a que pelo menos dez mil judeus não entrassem no matadouro nacional socialista. O Estado Novo não lhe perdoou; expulsou-o do corpo diplomático, deixou-o sem vencimento e fê-lo cair na miséria.

Os oitenta anos e muitos anos não atropelam a memória de Pedro. Descreve o que viu em Bordes: uma enchente de refugiados que trazia a aflição no semblante. Relata a angústia sentida pelo seu pai, em vésperas de arriscar a carreira e o sustento dos seus catorze filhos. Recorda os três dias de Junho, em que as portas do consulado ficaram escancaradas para que o pai passasse compulsivamente vistos.
Quando a PIDE chegou à cidade francesa, Aristides já tinha saltado a fronteira para seguir a promessa; salvar mais pessoas. È nesta altura que Pedro regressa a Portugal. Mas por pouco tempo: o nome da sua família tinha entrado no índex nacional, e os filhos de Sousa Mendes seriam obrigados a emigrar para sobreviver.
Foi o que fizeram. Uns partem para os Estados unidos da América e Canadá, Pedro opta por África, onde ficou cerca de vinte anos.

Logo que a II Guerra Mundial estalou, os seus irmãos vieram para Portugal. Qual foi a razão de ter sido o único filho de Aristides de Sousa Mendes a permanecer em Bordéus?
Eu tinha vinte anos, frequentava o 3º ano de Direito e adorava os meus estudos. A minha vida académica estava no auge e não podia largar a tão desejada carreira de advogado. No princípio da guerra, ainda ficou a morar connosco um irmão, mas ele não suportou aquele ambiente horripilante. Uma atmosfera que ia ficando cada vez mais pesada e insuportável.

Como descreve o ambiente?
Era uma fatalidade, uma tragédia. Grávidas, velhos, crianças, homens, mulheres, que estavam em doloroso estado de desespero. Numa aflição agonizante. Num sofrimento brutal. Bordéus estava inundado de refugiados. Estas pessoas só queriam viver. Viver. Tenho a certeza que não haverá diferença entre o que vi e o inferno.

Mas não quis trocar o horror pela paz portuguesa.
Como seria eu capaz de me ir embora? Não queria deixar o meu pai e a minha mãe.

Ele reagiu imediatamente a este cenário?
O meu pai, que já estava cansado de tantas contrariedades, acabou por ficar doente.

As “contrariedades” eram o facto de Salazar não ter gostado de alguns vistos concedidos pelo seu pai antes de 1940?
Ele entendeu de pronto que estava diante de uma questão meramente humanitária e, como a vida de seres humanos dependia exclusivamente do seu carimbo, da sua assinatura, decidiu que tinha de conceder vistos sem a autorização do governo português. Já nessa ocasião percebeu o que viria atrás. Ele sabia perfeitamente qual seria a atitude de Salazar e, como tal, ainda ficava mais triste e mais doente. Mas nunca teve medo.

E foi repreendido por Teotónio Pereira, o então embaixador de Portugal em Madrid.
Pois foi, mas de nada serviu esse puxão de orelhas. O meu pai, mesmo consciente do enorme risco que corria, decidiu salvar todas as criaturas que podia.

A descomunal concessão de vistos surgiu em meados de Junho?
Sim, foi nesse mês que a situação ficou totalmente inumana. E se em Bordéus já havia um mar de gente aflita, em Junho houve uma avalanche de tormento. Milhares de refugiados com a angústia gravada nos rostos. Procuravam uma coisa que agora pode parecer simples, mas naquele tempo era deveras impossível: viver.

Os refugiados concentravam-se em que lugares?
Em todos os lados. Não havia uma esquina, um canto onde eles não estivessem. As suas caras eram assustadoras. Precisavam de viver e não sabiam se seria exequível. A fila que ia dar ao consulado era infinita. Sem fim. Gente, gente e mais gente. É incalculável, inenarrável, impossível de descrever. Ficavam dias no mesmo sítio. Dias. Não largavam os lugares para não perderem a vez. Quando eu saía para ir às aulas, parecia que um continente queria entrar no consulado.

Falava com essas pessoas?
Dizia-lhes coisas para os animar, para que sorrissem, para ver alguma esperança naquelas faces tão amarguradas. Às vezes dizia, para os tranquilizar: “Eu sou o filho do cônsul, o meu pai irá ajudar-vos”.

Estava convicto que o seu pai não ia ficar apático?
Sem dúvida. Era um homem muito bom, muito generoso. Como é que ele ficaria indiferente diante daquela terrível situação?

Quando é que surge a decisão de conceder vistos?
Durante três dias o meu pai ficou doente, não comia, estava em retiro no seu quarto. Até que numa manhã saiu da cama, arranjou-se, vestiu-se e, quando ia a sair, a minha mãe perguntou-lhe: “Não me dizes para onde vais?”. Eu estava em casa e ouvi a resposta: “Olha Gigi eu ouvi uma voz que me disse: levanta-te e vai dar vistos a todos. A todos. Sem nenhuma excepção. E é isso que eu decidi”.
Abriu a porta da chancelaria, viu o abismo de multidão que continuava à espera de um milagre, e em voz alta pronunciou esta frase: “Eu quero dizer-vos que a partir de agora vocês vão receber vistos. Vocês e todos”.

Esteve três dias a reflectir e outros três dias a dar vistos incessantemente …
Naqueles três dias de Junho não sossegou um minuto. Ele tinha que cumprir a promessa feita: conferir licença a todos. Se dormisse ou se comesse, perderia tempo, e era menos uma pessoa que seria salva. Recordo-me muito bem: 17, 18 e 19 de Junho de 1940. Não houve descanso.

É verdade que alguns refugiados dormiram no consulado?
Com certeza. Ficavam onde cabiam; nas camas, em cima dos tapetes, sentados nas cadeiras, sofás, eu sei lá! Foi ali que conheci o rabino Kruger, a mulher e os filhos. Eles sentiram bem na pele o gesto do meu pai.

Voltou a ver algum deles?
Não. Escrevemo-nos. Telefonámo-nos.

Fez amigos durante a guerra?
Estávamos numa altura em que as pessoas tinham muita pressa e muita aflição. Não havia tempo para nada que não fosse sobreviver. Mas lembro-me de um rapaz mais novo do que eu. O jovem dormiu num quarto ao lado do meu. Ficámos a falar quase a noite toda. Contava-me os seus sonhos, a tremenda vontade que tinha de viver em absoluta liberdade, sem ter que sentir medos e perseguições. Eu desabafava as minhas coisas. Antes das sete da manhã, despedimo-nos. Ainda lhe disse que um dia haveríamos de fazer muita coisa juntos. Ele sorriu, bateu com a porta e nunca mais o vi. Se é meu amigo? Nunca segredei tanta coisa em tão pouco tempo a alguém …

Quando a PIDE chegou a Bordéus, os seus pais já estavam a caminho de Bayone?
É bom que se saiba: ele não fugiu à PIDE. O que pretendia era conseguir abonar mais vistos. Em Bordéus já não era viável, por isso, foi em direcção à fronteira para salvar mais pessoas. Deu vistos em todos os lados onde via refugiados. No caminho, nas ruas, nos cafés, etc.

Ficou ainda em Bordéus?
Não. Vim de carro com um casal belga. O meu pai aconselhou-me a regressar. Era perigoso ficar.

Quando é que tornou a ver o seu pai?
Curiosamente, a meio do caminho, quase a chegar à fronteira, estávamos a pôr gasolina no carro, e quem é que eu avisto do outro lado da rua? O meu pai. Foi emocionante. Não falámos, mas dissemos muita coisa naquele silêncio.

Mas quando é que a família se reencontra na casa do Passal em Cabanas de Viriato?
Eu cheguei após oito dias de ter partido, e os meus pais regressaram logo a seguir, talvez depois de duas semanas.

Como é que ele estava?
Sentia-se aliviado. Disse-me a mim e aos meus irmãos, que tinha feito o que a sua consciência mandava.

Ele previa castigos governamentais?
O meu pai pediu-nos para termos muita coragem, para sermos fortes, porque o futuro que se aproximava iria ser negro, muito negro. Advertiu-nos que iríamos entender o seu comportamento, naquela altura ou mais tarde.

Acha que ele, alguma vez, se arrependeu?
Nunca. Apesar da solidão e do desespero de ter ficado sem emprego, nunca lhe ouvi nem senti um mínimo remorso.

Nem mesmo com um processo disciplinar, Notas de Culpa, e de ter ficado sem vencimento?
Nunca teve um milésimo de segundo de arrependimento. Se ele pudesse ter salvo mais gente tê-lo-ia feito

O seu pai teve ajuda dos amigos?
Amigos? Quais amigos? Antes de Junho de 1940 ele tinha muitos, mas depois, ficou muito sozinho. As pessoas tinham pavor de serem vistas ao pé dele. A minha mãe não aguentou aquela injustiça e morreu pouco tempo depois.

E ele voltou a casar com uma francesa.
Sim, mas essa companhia não lhe tirava a dor que vinha da alma. Sozinho. Sem dinheiro. Na miséria. Os filhos longe, porque precisavam de sobreviver. E a nossa casa do Passal estava vazia e deteriorada.

E porque motivo os filhos tinham que estar longe?
Para se ter uma ideia da nossa situação, todos nós tivemos que emigrar. Em Portugal, ninguém nos dava emprego. As pessoas tinham medo de estar ligadas à família Sousa Mendes. Salazar não ia gostar. Elas seriam postas de lado e punidas.
Os meus irmãos foram para os E.U.A. e Canadá … Eu bem queria ter ido para a América, mas tinha que esperar sete anos por um visto. Sete anos. E como eu não podia esperar esta enxurrada de anos, fui para África, e já casado.

A sua irmã Joana escreveu uma carta a Américo Tomás onde pedia ajuda, mas nunca obteve resposta.
A minha irmã era muito corajosa. Tinha muita força. Mandou uma carta ao Almirante Tomás, no entanto, ele nunca respondeu. Mas a carta que ela escreveu ao Ben Gurion, teve resposta e resultados.
Nos anos 60 foram plantadas no bosque do museu do Holocausto vinte árvores em nome do nosso pai e, passado pouco tempo, recebeu uma medalha dos Justos entre as Nações.

Quando seu pai morreu em 1954, ainda estava em Portugal?
Não, já me tinha ido embora. É curiosa, a coincidência; em Marçºo desse ano eu tinha recebido uma carta do meu pai. Dizia-me que muito em breve me faria uma visita. Mas não chegou a fazer essa maravilhosa surpresa. Morreu precisamente passado um mês.

Morreu a 3 de Abril num quarto do Hospital da Ordem Terceira …
E dizem que nem roupa tinha para ser enterrado. Foi sepultado com vestes de franciscano, a roupa que o hospital lhe deu.

Hoje em dia Portugal redimiu-se?
O meu pai tem ruas com o seu nome, uma escola, são publicados livros sobre a sua vida; Portugal já reconheceu o gesto do meu pai: o Estado português ajudou a comprar a Casa do Passal.

Uma casa que está em ruínas …
Está, mas há-de deixar de estar.

Como?
Com a vontade de todos.

Considera urgente a sua reconstrução?
É lógico que sim. Portugal e a fundação Aristides de Sousa Mendes devem participar e incentivar essa reedificação.

A casa, quando estiver restaurada, voltará para a família?
Não, absolutamente. Fica para Portugal, para o mundo, para que nunca se esqueçam do português que ajudou a salvar a humanidade. Que a conduta do meu pai sirva de exemplo.

1 comentário:

António disse...

http://antoniopovinho.blogspot.com/2005/10/cabanas-de-viriato-e-casa-do-passal.html
É urgente salvar a Casa do Passal, memória de um Homem Justo.